7.3.08

Édipo vai ao dentista

Como qualquer criança saudável, eu tive direito a uma dentição. Chamam-lhe dentição de leite porque de facto, os primeiros dentes apenas servem para roer os mamilos das mães, se ainda lá andarmos a mamar. Não é para todos. A relação edipiana com a minha mãe deve ter começado no alargado tempo de amamentação a que fui submetido.
O leite materno devia ter muito cálcio porque, mais tarde, como qualquer ser humano saudável, tive direito a uma segunda dentição forte e saudável. Disseram-me que seria definitiva, mas hoje em dia, nada é definitivo. Por isso, em plena adolescência como qualquer português saudavelmente pobre e a viver numa terra de água esquecida pelo flúor, fui atacado por uma espécie de peste negra dos dentes a que chamam cáries. Tenho por isso um dos meus momentos mais negros numa noite de aguardente e muita, muita dor. E ainda haviam de me ficar caras as cáries.

Agora, como qualquer europeu saudável, ando a arranjar os dentes. Parte já tinha sido feita há uns anos e agora voltei para acabar o trabalho. Não é fácil porque o orçamento que me foi dado é semelhante ao orçamento para fazer obras em casa. Só que mais caro. É preciso mandar paredes abaixo, construir novas, rebocar outras e colocar loiças novas. De porcelana, segundo parece. Tenho dúvidas. Queriam mesmo pôr-me uma ponte, mas eu opus-me. Para mim, as pontes são uma responsabilidade do Estado. Recuso-me a pagar “obras de arte” na minha boca. A comida que vá de volta.

Tenho uma dentista, ou seja, um cirurgião-dentista do sexo feminino. Quando entro no consultório, cumprimento-a com um aperto de mão. Tenho sempre muito cuidado com a mão dela. Não só porque tem umas mãos frágeis, finas e delicadas, mas também porque aquela, é a mão que vai estar na minha boca. E nessa altura, confesso, parece uma mão de ferro. Aquele ser delicado e pequeno, com um alicate na mão transforma-se num perigoso jagunço tira-dentes. E é nessa altura, enquanto eu estou de tubos aspiradores na boca, mandíbulas dormentes e suores frios de pânico, que ela, com um projector de luz nos meus olhos, me interroga ameaçadoramente: “Isto não está grande coisa. Que pasta de dentes é que usa?” E vendo que será difícil eu responder-lhe pestanejando, continua a falar e a fazer-me perguntas que, como boa polícia de interrogatório das SS ou KGB, ela própria se encarrega de responder. Para depois me ferrar as gengivas com um dos vários instrumentos de tortura tecnológica ao seu dispor na bancada. Que é para eu não ser tão pouco cooperativo.

No meio da tortura, com alicates para cá, aspiradores para lá e puxões para todos os lados, ela mete a cara dela mesmo por cima da minha e olha-me fixamente. A sádica. Eu desvio o olhar para o tecto da sala e disfarço. Mas por vezes olho-a fixamente nos olhos para a confrontar. Depois, dá-me o medo e desisto. Nisto, talvez por causa do sangue que me inunda a boca e que ameaça saltar para as paredes do consultório, ela entusiasma-se e debruça-se sobre mim. Vejo-lhe o decote pelo canto do olho, mas não tenho coragem de espreitar. Não me parece o momento indicado. Isto é ela a provocar-me. O dente dá luta e não quer sair. Oiço a carne a estalar. Ela faz força no alicate e eu vou atrás do dente. Os meus dentes são como os meus segredos, só mos tiram a ferros. Mas um homem não é de ferro: quando ela se encavalita sobre mim, um dos seus seios esborracha-se-me no ombro… Eu, esvaído em sangue, quase desmaio. O dente salta do sítio, o alicate desengata-se-me da boca e eu bato com a cabeça no apoio e fico sem reacção. Ela, triunfal, exibe o molar de três raízes na ponta do alicate: “Este deu luta! Vamos ter que dar aí um ponto ou dois…”

Chego a casa a falar como se fosse um mongolóide. Três dias a comer por uma palhinha e a bochechar com água e sal, ensinaram-me que não tenho jeito para o Sadomasoquismo. Mas aos poucos, o meu complexo de Édipo está a passar-se para a minha dentista – nunca nenhuma mulher me fez sofrer tanto, nem nenhuma me ficou tão cara… Hei-de perguntar-lhe se é casada e pedir-lhe que baixe a máscara para lhe poder ver a cara.

2 comentários:

MJLF disse...

Excelente texto, de facto a relação entre dentista e doente é sadomasoquista e edipiana, ficamos ali de boca aberta, indefesos e eles em obras de restauro no nosso interior, fazem o que querem com preços exorbitantes, bem analizado.
:)
Maria João

flôr de sal disse...

a minha dentista tem uma predilecção qualquer pelo meu pai, isto talvez, porque ela nunca lhe mexeu na boca. A mim, escancarando-ma, atolava-ma de um arsenal de objectos tilintantes e no fim, acusava-me de ser uma antipática (ao contrário do meu pai, fazia ela questão de frisar), porque naqueles preparos, não lhe respondia às perguntas. Depois, num gesto que sempre interpretei de pura vingança, dava-me palmadinhas pertensamente encorajantes nas costas quando se apercebia que eu estava quase a vomitar...